Sempre com os livros na cabeça...

Anne-Louis Girodet Trioson - «Retrato de Benoist-Agnès Trioson», 1798

ANNE-LOUIS GIRODET TRIOSON [Montargis, 1767 - Paris, 1824]

Retrato de Benoist-Agnès Trioson, 1798

Óleo sobre tela, Musée Girodet, Montargis, França

 

Pour Dominique, à Montargis, avec un grand merci.

 

Uma criança e um livro.

A criança tem os olhos postos em nós — um olhar azul e melancólico.

Os seus longos cabelos castanhos, encaracolados e caídos sobre os ombros e as costas, suscitam-nos a interrogação — menina ou menino?

O rosto, redondo e rosado, não nos ajuda muito a desfazer a dúvida. Deixa-nos, isso sim, adivinhar-lhe a idade — a criança terá uns sete, oito anos…

E a roupa, poderá ela auxiliar-nos a esclarecer a questão? Uma camisa branca, um colete e o que parece ser uma saia, ambos cor de camurça. Trata-se, então, de uma menina, não?…

Pequeno reparo: nessa época — final do século XVIII — e ao longo de quase todo o século seguinte, a saia era uma peça de roupa indistintamente usada por raparigas e rapazes durante a infância. Assim, a dúvida persiste — menina ou menino?

Voltemos aos cabelos. Longos, separados por uma risca ao meio, caídos sobre os ombros e as costas. Novo reparo: nessa época, as raparigas sempre apareciam com os seus cabelos penteados de forma mais cuidada, sendo ainda frequente o uso de um chapéu. É, afinal, um menino?…

Tempo agora de vos fornecer outros dados que não se podem observar na obra, mas que nos confirmarão que se trata efectivamente de um menino.

O seu nome é Benoist-Agnès Trioson. Repararam nos seus nomes próprios? Dois, unidos por um hífen: «Benoist», que hoje se escreveria «Benoît», cujo equivalente em português é «Bento»; e «Agnès», cujo equivalente em português é… «Inês»!

Como? Então o menino tem um nome de menina?…

Sim, como em português se encontram o nome masculino «José Maria» e o nome feminino «Maria José».

Mas regressemos ao menino retratado.

Benoist-Agnès está sentado numa almofada de damasco decorado com motivos vegetais e tem diante de si uma secretária com uma gaveta entreaberta. Espreitemos o interior desta: está dividida em compartimentos; de dentro de duas das divisórias despontam algumas cartas de jogar, das quais se identificam um valete de copas e um valete de paus; e, com um pouco mais de atenção, descobriremos dois tinteiros, um no canto esquerdo, outro no canto direito. Sobre a secretária está um volumoso livro que o menino mantém aberto. No cabeçalho da página do lado esquerdo pode ler-se «Figures de la Bible» [«Figuras da Bíblia»]. Mas o olhar azul e melancólico de Benoist-Agnès não pousa no livro: pousa em nós. Porquê essa tristeza no olhar?…

Já reparámos nas suas maçãs do rosto — rosadas. Já tentámos descortinar-lhe a idade — sete, oito anos. Atentemos noutros pormenores. A camisa, embora alva e sedosa, tem o colarinho desabotoado e as mangas arregaçadas, um pouco descuidadamente. No bolso lateral da saia surge um bilboqué. Um bilboqué é um brinquedo constituído por um bastonete — afiado numa extremidade e alargado em forma de taça na outra — e por uma bola perfurada que lhe está presa por um fio. Jogar bilboqué exige destreza — o jogador deve lançar a bola no ar e tentar apará-la enfiando-a na extremidade aguçada. A bola do bilboqué que aparece na pintura é de marfim, o que nos elucida sobre a posição social da família Trioson.

Todavia, falta ainda explicar a melancolia no olhar azul de Benoist-Agnès.

É chegado o momento de se falar do pintor.

Girodet nasceu em 1767, em Montargis, uma pequena cidade da região de Orleães, situada entre o rio Loire e Paris. Agora, atenção ao seu nome completo: Anne-Louis Girodet de Roucy-Trioson. Dois pormenores saltam à vista: de novo, um nome próprio feminino — «Anne» [«Ana»] — atribuído a um homem; de novo, o apelido Trioson. Haverá, então, parentesco entre o retratista e o retratado?

Benoist-Agnès Trioson é filho de Benoist François Trioson, médico de Paris e homem culto que possui uma casa em Montargis. Nesta casa, o doutor Trioson tem como vizinhos os Girodet, de quem se torna amigo e benfeitor. Não é, por isso, inesperado que estes lhe peçam que se torne o orientador dos estudos de Anne-Louis. O doutor Trioson aceita o pedido. Estamos em 1776, o pequeno tem nove anos.

Aos vinte anos, Girodet é já órfão de pai e mãe. Mais tarde, será adoptado pelo seu protector — daí, o apelido «Trioson» que passará a fechar o seu nome. Retratista e retratado são, afinal, irmãos adoptivos…

Em Paris, Girodet torna-se discípulo do pintor neoclássico Jacques-Louis David [1748-1825]. Com o tempo e o trabalho, os frutos: em 1789, Girodet ganha o «Prix de Rome» [«Prémio de Roma»], uma bolsa de aperfeiçoamento artístico na cidade italiana. Aí permanece cinco anos, alarga horizontes e amadurece. Regressa depois a Paris.

Entretanto, contacta com a obra do escritor e filósofo Jean-Jacques Rousseau [1712-1778]. Girodet identifica-se, sobretudo, com as suas teorias sobre educação. Nascido em Genebra numa família protestante de origem francesa, Rousseau defende o polémico princípio de que a melhor educação que uma criança pode ter é… não ter educação nenhuma!… Como desconfia vivamente do «progresso» e da «civilização» — o que o põe às avessas com o pensamento dominante do seu século, o «Século das Luzes» —, Rousseau propõe uma «educação natural»: até aos doze anos, a criança deve apenas brincar, jogar, de modo a desenvolver os órgãos e os sentidos; só depois deve chegar o tempo de formar o espírito através da aprendizagem das artes, da leitura, da escrita, do cálculo…

E a melancolia no olhar do pequeno Benoist-Agnès? Será que a podemos finalmente decifrar?

Creio que sim.

Recapitulemos: sete ou oito anos de idade, rosto rosado, colarinho desapertado, mangas arregaçadas, brinquedo no bolso…

É claro, não é? Benoist-Agnès esteve a brincar — não nos custa imaginá-lo risonho, a correr, a saltar, a fazer cabriolas, a jogar bilboqué.

Só que, agora, ei-lo em tempo de estudo, retratado por Girodet, a quem tanto agradam as teorias de Rousseau — silêncio, concentração, esforço. E melancolia, por estar a estudar em vez de ter continuado a brincar…

 

Fontes consultadas:

bellenger, Sylvain - Girodet: 1767-1824. Paris: Musée du Louvre/Gallimard, 2005. ISBN 2-07-011783-9

Darbeau, Bertrand - Les Lumières: Anthologie. Paris: GF Flammarion, 2002. ISBN 2-08-072158-5

https://www.loiret.com/cgloiret/staticcontent/loiret_musee_girodet.php# [7.Novembro.2008]

https://www.louvre.fr/media/repository/ressources/sources/pdf/src_document_50444_v2_m56577569830612574.pdf [7.Novembro.2008]

https://www.wga.hu/ [7.Novembro.2008]

 

[Abílio Santos, 2005]

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