Sempre com os livros na cabeça...

Antoine Disome - «Copista recebendo visita de um mecenas», meados do século XV

ANTOINE DISOME [França, século XV]

Copista recebendo visita de um mecenas, meados do século XV

Iluminura sobre pergaminho, Bibliothèque Nationale de France, Paris, França

 

 

A imagem que hoje vos trago desvia-se um pouco do que tem sido habitual neste espaço: não se trata de uma pintura a óleo sobre madeira ou tela, pensada para receber uma moldura e para estar exposta.

Desta vez, apresento-vos uma iluminura: uma pintura em miniatura, inicialmente concebida para «iluminar» — para dar cor e tornar atraente — o aspecto negro e sombrio do texto de uma página manuscrita. Embora geralmente apenas entendida como uma arte “menor” destinada a criar ornamentos, a verdade é que, graças aos mestres que a ela se foram dedicando, a arte da iluminura ganhou asas e é hoje vista como uma arte “maior”, não obstante as humildes dimensões de grande parte das obras do seu género.

Traga-se então à luz uma pequena pintura que tem passado grande parte da sua existência escondida, encerrada dentro um livro.

Giovanni Colonna, um humanista italiano contemporâneo de Francesco Petrarca, idealizara uma crónica universal que relatasse a história do Mundo, desde o episódio da Criação até ao seu século XIV. Tarefa imensa. Não admira, pois, que Colonna tivesse escolhido para título dessa obra Mare historiarumMar de Histórias… Todavia, a morte impedi-lo-ia de concretizar integralmente esse intento — a crónica quedou-se pelo século XIII… Mesmo assim, incompleto, o Mar de Histórias viu reconhecido o seu valor e dele foram sendo feitas cópias. Uma dessas cópias começa a ser executada no ocidente da França, talvez na região de Angers, cerca de 1446.

A iluminura que escolhi encontra-se nesta versão. É ela que abre a obra — surge de imediato na face da primeira folha, a encimar o índice. A existência de uma iluminura a coroar um índice é tão rara que já permite antever que se está em presença de um livro manuscrito de grande valor.

Mas atentemos na imagem — que vemos então?

Uma cena de interior: a um canto de um compartimento, sentado num banco, um copista interrompe o seu trabalho ao receber a visita de um pequeno grupo de pessoas.

Pela rama, eis o tema central da imagem. Agucemos agora o olhar.

O copista segura na mão direita um cálamo — fragmento de cana fina talhado em bisel numa das extremidades — de que se serve para escrever. Sobre os joelhos tem uma folha de pergaminho ainda por encadernar, na qual são visíveis as linhas vermelhas do regramento e uma parte do texto que está a ser transcrito a partir do «exemplar», isto é, a partir do manuscrito aberto que é utilizado como modelo; este encontra-se na mesa de trabalho que o copista tem diante de si. Nesta mesa — que mais não é do que um outro banco mais alto — repousam vários objectos, todos eles utensílios fundamentais para um copista: um estojo para penas e cálamos e um pequeno tinteiro de tinta preta, ambos atados a um cordão vermelho que permitia ao copista transportá-los pendurados na cintura; cálamos e penas, em número de três; uma pequena caixa cilíndrica contendo areia fina que era utilizada para ajudar a secar a tinta; e, sobre o «exemplar», um canivete usado para raspar os erros e para aparar penas e cálamos.

Um olhar atento à mesa situada à esquerda do copista permitir-nos-á descobrir outros objectos: três penas, várias conchas de ostra com pigmentos de diferentes cores e dois pequenos frascos de vidro. Neste caso, já estamos em presença de utensílios associados à arte da iluminura. Em cada frasco, o artista — o iluminador — conservava um aglutinante, uma substância líquida ou semilíquida que permitia ligar e fixar os pigmentos; alguns dos aglutinantes mais comuns eram a gema ou a clara de ovo — ou ambas misturadas —, a cola, a cera e a goma-arábica. As conchas eram utilizadas como godés: nelas se adicionava o aglutinante ao pigmento. Quanto às penas, destinavam-se à escrita de títulos, de letras capitulares e de outras notas a inserir nos manuscritos; estas partes, por serem habitualmente de cor vermelha, passaram a ser denominadas «rubricas», termo derivado do latim «ruber», que significa vermelho.

Agora, uma questão — que espaço será este em que o copista se encontra a trabalhar?

Atenção, pois, a alguns pormenores que se seguem.

À esquerda do copista, uma janela ampla, mais exactamente uma janela de cruzeta, característica de uma arquitectura rica e cuidada. Que pode ver-se através dela? Uma paisagem rural e um céu escuro e estrelado — é já noite, com certeza.

Ao fundo da sala, fixa à parede num plano elevado, uma prateleira com nove livros à vista, arrumados ainda à moda antiga, na horizontal. Escrevo “ainda” porque é precisamente apenas a partir dos séculos XIV-XV que se começa a impor a arrumação dos livros na vertical.

Conjuguemos, então, estes dados: a hora tardia da visita; a probabilidade de se tratar de um residência aristocrática; e a existência de um número de livros significativo. Talvez não andemos longe da verdade se afirmarmos que o “nosso” copista está instalado na biblioteca do local onde reside a personagem poderosa que encabeça o pequeno grupo que o vem visitar…

Outra questão — poder-se-á saber que personagem tão importante será esta?

Dois detalhes mais: por um lado, o vestuário que ela enverga elucida-nos imediatamente sobre a função que desempenha — são vestes para uso exclusivo do chanceler de França, um alto funcionário do Estado a quem incumbia guardar e dispor do selo do reino; por outro lado, o copista ostenta, ao longo da manga direita da sua veste azul, uma série de emblemas dourados representando a letra “j” este era o monograma da família Jouvenel des Ursins.

Cruzando estes dados com a data comprovada de execução da iluminura, a personagem representada é, pois, Guillaume Jouvenel des Ursins [1401-1472], francês de origem italiana incerta, magistrado e homem de guerra, nomeado chanceler de França a partir de 1445. Deduzimos facilmente a razão da sua presença junto do copista — vem, acompanhado de um pequeno grupo, inteirar-se do andamento do trabalho de transcrição do Mar de Histórias de Colonna. Guillaume Jouvenel é, afinal, um mecenas que visita o artista a quem encomendou uma obra.

Depois de tudo isto, uma última questão — poder-se-á também identificar o “nosso” copista?

Sim. O seu nome é Antoine Disome. Notário apostólico, copista e iluminador, Disome começa por trabalhar para Guillaume Jouvenel. Em 1453, inicia uma carreira independente como notário e secretário da chancelaria do rei de França, Carlos VII, mas permanece estreitamente ligado ao seu mecenas. A comprovar este facto está a data provável do termo da tarefa de “iluminação” deste Mar de Histórias — 1455.

Assim fica desvendada a natureza da iluminura que vos trago — uma assinatura que o copista-iluminador deixa sob a forma de auto-retrato…

 

Fontes consultadas:

cassagnes-brouquet, Sophie - La passion du livre au Moyen Age. Rennes: Ouest-France, 2003

Girard, Estelle e ZALI, Anne - L’aventure des écritures: matières et formes. Paris: Bibliothèque nationale de France, 1998

mcMurtrie, Douglas C. - O Livro: Impressão e Fabrico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997

mendonça, Manuela - «A Iluminura nos Arquivos Nacionais: conservação e comunicação» in Oceanos, 26. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1996

peixeiro, Horácio Augusto - «Um Missal Iluminado de Santa Cruz» in Oceanos, 26. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1996

teixeira, Luís Manuel - Dicionário Ilustrado de Belas-Artes. Lisboa: Presença, 1985

https://expositions.bnf.fr/fouquet/index.htm

https://expositions.bnf.fr/fouquet/pedago/dossiers/62/3/a.htm

 

 

[Abílio Santos, 2005]

 

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